O SONHO DE FRA ANGELICO
   
 em memória do João de Almeida   
emanuel dimas de melo pimenta
filme - concerto musical
2020 Novembro 
  
                 Fra Angelico, Thebaide, 1420, oil on panel

É tudo o que vemos ou que parece ser
nada mais que um sonho dentro de um sonho?

Edgar Allan Poe

Fra Angelico é um daqueles misteriosos personagens cuja existência nos coloca, inevitavelmente, às portas do medievo. Nada sabemos sobre ele e, paradoxalmente, sabemos muito.
Não conhecemos o seu nome original, nada sabemos da sua família, da sua infância ou até mesmo da sua vida cotidiana.
Terá nascido em torno do ano 1395, na Toscana, em Fiesole, ao norte de Florença. Hoje, com a expansão urbana, a pequena aldeia onde nasceu faz parte da região metropolitana de Florença.
Como acontece até hoje, desde a época do nascimento de Fra Angelico, Fiesole era um refúgio para as famílias ricas de Florença.
Já se tinham passado cerca de sessenta anos desde a morte de Giotto quando Fra Angelico nasceu.
No momento em que ele entra para a guilda da Igreja de Carmine no dia dezassete de Outubro de 1417 - portanto com cerca de vinte e três anos de idade - já era pintor. O documento da igreja é o primeiro que se conhece sobre ele. Era, então conhecido como o Guido do Pedro... ou Guido, filho do Pedro.
Quem nos dá mais informações sobre Fra Angelico é Giorgio Vasari que dizia se tratar de um "talento raro e perfeito".
Há outras pistas.
Fra é uma contração de "frater" e indicava especificamente os frades mendicantes - os que viviam de esmolas e doações, os que eram intencionalmente pobres. O nome que lhe escolheram na igreja foi "angélico", angelical. Conta-se que era uma pessoa boa, simpático, generoso, dedicado e, pelo que vemos nas suas obras, era obcecadamente entregue ao seu trabalho - como expressão maior da sua religiosidade.
Angelico permaneceu no convento de Fiesole até ao ano de 1436, quando tinha cerca de quarenta anos de idade. Foi então que mudou para o convento de São Marco, em Florença, onde conheceu Cosimo di Medici - avô de Lorenzo il Magnifico.
Terá sido a convite de Cosimo que Fra Angelico pintou o convento.
Conheceu Marsilio Ficino.
Em 1445, aos cerca de cinquenta anos de idade, foi chamado ao Vaticano, sempre como frade pintor. Sete anos depois, voltou a Fiesole, partindo novamente para o Vaticano em 1455, onde permaneceu no convento dominicano de Roma, e morreu naquele mesmo ano, no dia dezoito de fevereiro, inverno, aos cerca de cinquenta e nove anos de idade.
Não se conhece a causa da sua morte. Então, Lorenzo di Medici tinha seis anos de idade.
Num certo sentido morreu incógnito - apenas o personagem pintor ficou para a memória. Todo o resto desapareceu, como acontece tantas vezes com os nossos sonhos.
Foi contemporâneo de Filippo Lippi, de Leon Battista Alberti e de Piero della Francesca. Brunelleschi tinha cerca de vinte anos de idade quando Angelico nasceu.
Foi uma figura estranha na história da pintura. Se, por um lado, a sua obra parece insistir numa espécie de nostalgia e celebração a Cimabue - mestre de Giotto - por outro lado questiona permanentemente a cultura do seu tempo através dos mergulhos na perspectiva plana e na luz. Se por um lado é um reacionário, por outro é um homem do futuro. A sua técnica ameaça um verismo fotográfico - é um crítico da visão.
Certamente nunca terá existido um artista tão paradoxal como Fra Angelico, dividido entre uma medievalidade que confortava e uma modernidade que ameaçava as famílias ricas da sua cidade natal.
Em torno de 1420, Fra Angelico, então com cerca de vinte e cinco anos de idade, pinta - óleo sobre painel, 75 x 207 cm, hoje nos Uffizi em Florença - uma grande obra: Thebaide.
A História nos conta que o painel terá sido baseado num dos seus sonhos. Ele nos mostra um universo que nos lembra algo do que viria a ser Hieronimus Bosch cem anos mais tarde, mas ainda sem o forte universo surreal. Novamente, Angelico está na fronteira entre dois mundos, zona de toda a potencialidade. O limite é a condição primeira da descoberta.
Tema muito popular em Florença do século XV, Thebaide é uma expressão surgida para designar textos que contavam as histórias da vida dos religiosos ascetas no deserto, na região próxima à cidade de Tebas, no Egito.
Uma espécie de fuga do mundo.
O Sonho de Fra Angelico é, entretanto, outro sonho. Dele e de todos nós. Uma viagem onírica através de cinco séculos da pintura, até ao século XX, a tecnologia, o cinema.
Um sonho-viagem da época de Angelico e os nossos tempos.
Uma viagem num universo entre mundos, onde a própria imagem está na fronteira da percepção. Onde aquilo que se vê é em grande parte os sistemas perceptivo e cognitivo de cada pessoa, de cada indivíduo - tal como acontece com o sonho.
Mas é também uma alucinante viagem a mundos-fronteira, como se o universo contemporâneo fosse o limite de um novo período medieval.
O sonho é uma experiência exclusivamente individual.
O que me faz lembrar Van Gogh quando dizia: "sonho a minha pintura e pinto o meu sonho".

Trata-se de um filme e uma composição musical, criados de forma totalmente independente. O único princípio comum foi estabelecer um contínuo.
No filme, as imagens dos cinco séculos de pintura, tecnologia e cinema são elaboradas segundo o fenómeno neuronal conhecido como "fluxo óptico".
Neurónios localizados no medial superior temporal area, também conhecido como MST, são especialmente orientados para responder aos estímulos de rotação, expansão, contração e translação relativamente ao campo visual. O MST recebe grande parte das suas entradas da área temporal média, ou apenas MT - que é particularmente sensível à detecção de movimento. É onde "acontece" o fluxo óptico.
O MT fica no lobo temporal, uma das quatro maiores regiões do tecido neocortical, e está diretamente relacionado à memória visual, à associação de emoções, e à compreensão de linguagem.
Quando observamos, por exemplo, uma queda de água durante algum tempo, assim que olhamos para algo estático temos a sensação de movimento no sentido contrário. Trata-se do chamado "efeito cascata". Um fenomeno do fluxo óptico.
Todos já sentimos isso.
A ideia central do filme O Sonho de Fra Angelico foi a de trabalhar uma estrutura complexa de fluxos ópticos, de forma a operar as nossas memórias visuais, alterando a percepção da forma.
Assim, não apenas o filme é uma referência visual aos cinco séculos de arte, tecnologia e também ao cinema, como cada pessoa assiste, num certo sentido, a imagem do seu próprio cérebro, uma imagem biológica de si próprio.
A música, composta para sete flautas transversais soprano, é elaborada com apenas três notas musicais para cada flautista. Essas notas foram determinadas após uma análise das relações entre notas musicais de um fragmento de um dos últimos quartetos de Beethoven, Opus 130.
O tempo de execução das notas musicais depende de cada flautista. Neste caso, eu toquei as sete flautas. O tempo de cada nota foi, então, determinado pela minha biologia, minha capacidade de tocar cada nota com a máxima duração possível.
As três notas vão se repetindo em ciclos independentes.
Os sons de cada flautista são distribuídos no espaço (virtual ou físico) de acordo com uma partitura que também determina a dinâmica.
Assim, de facto, neste caso a partitura é feita para o espaço e para a dinâmica.
Filme e composição musical são um trabalho sobre o ser humano, sobre a pessoa que assiste e ouve - e o faz ativamente - ou sobre quem toca o instrumento musical, produzindo uma interação entre humano, biologia, tempo e espaço.

Emanuel Dimas de Melo Pimenta

         
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emanuel pimenta

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