É tudo o que vemos
ou que parece ser
nada mais que um sonho dentro de um sonho?
Edgar Allan Poe
Fra Angelico é um daqueles misteriosos
personagens cuja existência nos coloca, inevitavelmente,
às portas do medievo. Nada sabemos sobre ele e, paradoxalmente,
sabemos muito.
Não conhecemos o seu nome original, nada sabemos da sua
família, da sua infância ou até mesmo da
sua vida cotidiana.
Terá nascido em torno do ano 1395, na Toscana, em Fiesole,
ao norte de Florença. Hoje, com a expansão urbana,
a pequena aldeia onde nasceu faz parte da região metropolitana
de Florença.
Como acontece até hoje, desde a época do nascimento
de Fra Angelico, Fiesole era um refúgio para as famílias
ricas de Florença.
Já se tinham passado cerca de sessenta anos desde a morte
de Giotto quando Fra Angelico nasceu.
No momento em que ele entra para a guilda da Igreja de Carmine
no dia dezassete de Outubro de 1417 - portanto com cerca de vinte
e três anos de idade - já era pintor. O documento
da igreja é o primeiro que se conhece sobre ele. Era,
então conhecido como o Guido do Pedro... ou Guido, filho
do Pedro.
Quem nos dá mais informações sobre Fra Angelico
é Giorgio Vasari que dizia se tratar de um "talento
raro e perfeito".
Há outras pistas.
Fra é uma contração de "frater"
e indicava especificamente os frades mendicantes - os que viviam
de esmolas e doações, os que eram intencionalmente
pobres. O nome que lhe escolheram na igreja foi "angélico",
angelical. Conta-se que era uma pessoa boa, simpático,
generoso, dedicado e, pelo que vemos nas suas obras, era obcecadamente
entregue ao seu trabalho - como expressão maior da sua
religiosidade.
Angelico permaneceu no convento de Fiesole até ao ano
de 1436, quando tinha cerca de quarenta anos de idade. Foi então
que mudou para o convento de São Marco, em Florença,
onde conheceu Cosimo di Medici - avô de Lorenzo il Magnifico.
Terá sido a convite de Cosimo que Fra Angelico pintou
o convento.
Conheceu Marsilio Ficino.
Em 1445, aos cerca de cinquenta anos de idade, foi chamado ao
Vaticano, sempre como frade pintor. Sete anos depois, voltou
a Fiesole, partindo novamente para o Vaticano em 1455, onde permaneceu
no convento dominicano de Roma, e morreu naquele mesmo ano, no
dia dezoito de fevereiro, inverno, aos cerca de cinquenta e nove
anos de idade.
Não se conhece a causa da sua morte. Então, Lorenzo
di Medici tinha seis anos de idade.
Num certo sentido morreu incógnito - apenas o personagem
pintor ficou para a memória. Todo o resto desapareceu,
como acontece tantas vezes com os nossos sonhos.
Foi contemporâneo de Filippo Lippi, de Leon Battista Alberti
e de Piero della Francesca. Brunelleschi tinha cerca de vinte
anos de idade quando Angelico nasceu.
Foi uma figura estranha na história da pintura. Se, por
um lado, a sua obra parece insistir numa espécie de nostalgia
e celebração a Cimabue - mestre de Giotto - por
outro lado questiona permanentemente a cultura do seu tempo através
dos mergulhos na perspectiva plana e na luz. Se por um lado é
um reacionário, por outro é um homem do futuro.
A sua técnica ameaça um verismo fotográfico
- é um crítico da visão.
Certamente nunca terá existido um artista tão paradoxal
como Fra Angelico, dividido entre uma medievalidade que confortava
e uma modernidade que ameaçava as famílias ricas
da sua cidade natal.
Em torno de 1420, Fra Angelico, então com cerca de vinte
e cinco anos de idade, pinta - óleo sobre painel, 75 x
207 cm, hoje nos Uffizi em Florença - uma grande obra:
Thebaide.
A História nos conta que o painel terá sido baseado
num dos seus sonhos. Ele nos mostra um universo que nos lembra
algo do que viria a ser Hieronimus Bosch cem anos mais tarde,
mas ainda sem o forte universo surreal. Novamente, Angelico está
na fronteira entre dois mundos, zona de toda a potencialidade.
O limite é a condição primeira da descoberta.
Tema muito popular em Florença do século XV, Thebaide
é uma expressão surgida para designar textos que
contavam as histórias da vida dos religiosos ascetas no
deserto, na região próxima à cidade de Tebas,
no Egito.
Uma espécie de fuga do mundo.
O Sonho de Fra Angelico é, entretanto, outro sonho. Dele
e de todos nós. Uma viagem onírica através
de cinco séculos da pintura, até ao século
XX, a tecnologia, o cinema.
Um sonho-viagem da época de Angelico e os nossos tempos.
Uma viagem num universo entre mundos, onde a própria imagem
está na fronteira da percepção. Onde aquilo
que se vê é em grande parte os sistemas perceptivo
e cognitivo de cada pessoa, de cada indivíduo - tal como
acontece com o sonho.
Mas é também uma alucinante viagem a mundos-fronteira,
como se o universo contemporâneo fosse o limite de um novo
período medieval.
O sonho é uma experiência exclusivamente individual.
O que me faz lembrar Van Gogh quando dizia: "sonho a minha
pintura e pinto o meu sonho".
Trata-se de um filme e uma composição
musical, criados de forma totalmente independente. O único
princípio comum foi estabelecer um contínuo.
No filme, as imagens dos cinco séculos de pintura, tecnologia
e cinema são elaboradas segundo o fenómeno neuronal
conhecido como "fluxo óptico".
Neurónios localizados no medial superior temporal area,
também conhecido como MST, são especialmente orientados
para responder aos estímulos de rotação,
expansão, contração e translação
relativamente ao campo visual. O MST recebe grande parte das
suas entradas da área temporal média, ou apenas
MT - que é particularmente sensível à detecção
de movimento. É onde "acontece" o fluxo óptico.
O MT fica no lobo temporal, uma das quatro maiores regiões
do tecido neocortical, e está diretamente relacionado
à memória visual, à associação
de emoções, e à compreensão de linguagem.
Quando observamos, por exemplo, uma queda de água durante
algum tempo, assim que olhamos para algo estático temos
a sensação de movimento no sentido contrário.
Trata-se do chamado "efeito cascata". Um fenomeno do
fluxo óptico.
Todos já sentimos isso.
A ideia central do filme O Sonho de Fra Angelico foi a de trabalhar
uma estrutura complexa de fluxos ópticos, de forma a operar
as nossas memórias visuais, alterando a percepção
da forma.
Assim, não apenas o filme é uma referência
visual aos cinco séculos de arte, tecnologia e também
ao cinema, como cada pessoa assiste, num certo sentido, a imagem
do seu próprio cérebro, uma imagem biológica
de si próprio.
A música, composta para sete flautas transversais soprano,
é elaborada com apenas três notas musicais para
cada flautista. Essas notas foram determinadas após uma
análise das relações entre notas musicais
de um fragmento de um dos últimos quartetos de Beethoven,
Opus 130.
O tempo de execução das notas musicais depende
de cada flautista. Neste caso, eu toquei as sete flautas. O tempo
de cada nota foi, então, determinado pela minha biologia,
minha capacidade de tocar cada nota com a máxima duração
possível.
As três notas vão se repetindo em ciclos independentes.
Os sons de cada flautista são distribuídos no espaço
(virtual ou físico) de acordo com uma partitura que também
determina a dinâmica.
Assim, de facto, neste caso a partitura é feita para o
espaço e para a dinâmica.
Filme e composição musical são um trabalho
sobre o ser humano, sobre a pessoa que assiste e ouve - e o faz
ativamente - ou sobre quem toca o instrumento musical, produzindo
uma interação entre humano, biologia, tempo e espaço.
Emanuel Dimas de Melo Pimenta
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emanuel pimenta
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Partitura musical de O Sonho de Fra Angelico - espaço e dinâmica
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